O brasileiro será salvo por Deus

João Campos Lima
6 min readMay 13, 2021

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“Quando Deus bota a mão, esquece…”. É a Deus que Adriano Imperador credita todas as conquistas que deram certo na sua vida. Assim ele revela em uma impactante entrevista concedida ao The Players’ Tribune (O Adriano Tem Uma História Para Contar). O seu dom para o futebol, o início da trajetória no seu amado Flamengo, apesar de tantas incertezas, e até mesmo alguns dos golaços que marcou com a inconfundível perna canhota… para o Imperador, suas glórias só aconteceram por conta de Deus.

“Pô, fala sério. Eu tinha 18 anos e morava na favela. Como é que você pode dizer que não fui tocado por Deus? Minha história não tem muita lógica, nem mesmo pra mim”, conta.

Essa entrevista é uma das grandes preciosidades que tive acesso recentemente. Adriano, o Didico, é reverenciado há anos pelos brasileiros, por ter sido um jogador de futebol excepcional e pelo seu carisma ímpar. Aquele sorriso parece revelar a alma de uma ainda criança que sonha acordada com olhos brilhando.

Há muito tempo se fala desta faceta “humana” do Imperador, louvando (ou detonando) a escolha que ele teve em determinado momento da carreira de voltar às suas raízes para ser feliz. Porém, as nossas impressões são distantes e limitadas, e somente na entrevista concedida que pudemos ver por ele próprio a alma desse “humano” completamente desnudada, por meio de seus gestos, suas explicações detalhadas, suas confissões, suas gaguejadas, suas pausas emocionadas. Um ser humano no seu estado mais autêntico!

Adriano foi cedo à Europa, saiu sendo pouco conhecido pelo seu país. Ele tinha o desejo de se apresentar ao povo brasileiro naquela Copa América de 2004. Com aquele golaço de canhota nos acréscimos da final contra a Argentina, no dia 25 de julho de 2004, alcançou o objetivo de modo glorioso. Ali, Adriano ficou plenamente introjetado no imaginário brasileiro para nunca mais ser esquecido.

Porém, a trajetória ascendente e meteórica do craque sofreu um forte baque dias após a glória. No dia 4 de agosto de 2004, Adriano, na Itália, recebeu uma ligação com a informação de que seu pai havia falecido. “Depois daquele dia, meu amor pelo futebol nunca mais foi o mesmo”.

Adriano passou a sofrer de depressão, e o álcool foi a saída que ele encontra até hoje para encarar os altos e baixos da sua vida. Estar nos braços da sua comunidade, especialmente da sua mãe e de sua avó (“Minha avó! P#$@ merda! É melhor você se benzer quando falar o nome dela! Sem ela na minha vida? Esquece… Você não saberia o nome Adriano”), foi a saída de aconchego que o Imperador escolheu. Foi nos braços da sua família e do seu amado Flamengo que ele reencontrou um pouco de luz para viver feliz.

“Sim, talvez eu tenha desistido de milhões. Mas quanto vale a sua paz de espírito? Quanto você pagaria para ter de volta a sua essência?”

Fonte: Gazeta do Povo

Adriano foi muito julgado pelas escolhas que fez. Foi julgado por retornar ao Brasil quando ainda tinha potencial para estar na Europa. Foi julgado por muitas vezes não ter tido o comportamento que se exige de um atleta. Foi julgado por não treinar como os demais, por beber, por fazer muitas festas, por faltar aos treinos e às sessões de fisioterapia. Uma vida cercada de julgamentos. Contudo, há muito tempo ele já deu um “basta” aos apontamentos alheios: para Didico, só Deus, sua mãe e sua avó podem o julgar.

Além de viver com o emocional instável, Adriano ainda rompeu o tendão de Aquiles, em 2011, dificultando ainda mais o restante de sua trajetória no futebol. À parte de não ter tido a dedicação necessária para encarar todas as sessões de fisioterapia, Didico revela que não teria mais condições de atuar como antes e que a imprensa não iria querer saber dos seus problemas, e iria cobrar o rendimento de Imperador. Esta manifestação foi reveladora de como o julgamento alheio machuca tanto quanto um tendão rompido (que nem dói tanto, como ele diz, mas que não sai do corpo e fica incomodando).

Quando vamos, imprensa e sociedade em geral, aprender a julgar menos? O fato de jogadores de futebol ganharem uma fortuna não pode ser justificativa para que a sociedade os julgue como bem entende, atacando, ridicularizando e dando pitaco sobre as escolhas de… seres humanos.

Tratamos jogadores como produtos de uma “marca” na qual nos identificamos. Poxa, isto é muito errado! Buscar a vitória a qualquer custo e se doar em campo é muito louvável, e é isso que esperamos dos nossos clubes e jogadores. Porém, temos de naturalizar que vamos ver os nossos clubes mais perder do que ganhar campeonatos e que nossos jogadores não vão sempre nos dar a vitória. Que muitos atletas cairão no ostracismo por lesões ou n motivos particulares e que não cabe a nós os julgar.

Não entendam mal, não estou pregando conformismo com a derrota, mas sim a aceitarmos a vida como ela é. O ser humano não é uma máquina feita para produzir em alto rendimento porque queremos, “porque pagamos”, “porque ele ganha bem pra isso”.

É importante ressaltar que muitos jogadores vão sucumbir como Adriano. Alcoolismo e depressão são problemas comuns mesmo nos “ambientes mais profissionalizados” do futebol. E quando os jogadores são revelados em sua intimidade, como Adriano foi na brilhante entrevista do The Players’ Tribune, ficamos impactados (e quantos anônimos sucumbem em cada canto do país e nem mesmo conhecemos suas histórias, apenas os conhecemos como os fracassados na profissão).

Com toda a montanha-russa de emoções que marcou a vida do Imperador, será que a vida assim vale a pena? Tendo o cuidado de não naturalizar e muito menos romantizar os dramas e os excessos cometidos, mas, acima de tudo, de não julgá-lo, acredito que essa é uma pergunta que só cabe a ele (e talvez seus contatos mais próximos) responder.

Porém, o que posso dizer é que, assim como Adriano, eu também acredito que Deus coloca a mão na cabeça de todos os brasileiros. Um papo como o concedido por ele pode ser visto em muitos bares e botecos do nosso país. Muitos Adrianos que não tiveram a mesma coroação divina de se converterem em um jogador de futebol famoso, mas que também possuem histórias de vida admiráveis para contar, de vidas recheadas de episódios intensamente vividos.

Aliás, um projeto que conheci me tocou muito nesse sentido: o SP Invisível, movimento que busca transmitir um olhar mais atento e humano a tantos invisíveis que vivem às margens na maior cidade do Brasil. Quando são escutados, conhecemos histórias interessantíssimas desses “invisíveis”.

Inclusive, uma delas me marcou especialmente. A história de Ricardo Garcia, poeta em situação de rua, 53 anos, que é conhecido como “o poeta da Paulista”. A história me tocou tanto que escrevi o seguinte comentário na página: “Longe de mim ficar venerando uma situação de vulnerabilidade social, mas a alma desse cara pode estar muito mais contemplada de boas vivências do que muitos magnatas. Que ele siga a sua caminhada com dignidade”.

Fonte: SP Invisível (Facebook)

O movimento SP Invisível tem um livro com 100 histórias, intitulado A PANDEMIA QUE NINGUÉM VÊ — a página informa que as vendas ajudam o movimento a seguir contando suas histórias.

Li do professor de Comunicação, Alexandre Rocha, de quem tive a honra de ser aluno na Fabico (UFRGS), que “o Brazil não conhece o Brasil”, frase do grande artista brasileiro Aldir Blanc, ideia também apontada por Luiz Antônio Simas, escritor primoroso. Em um Brasil que desampara seus brasileiros, um em um milhão ascenderá e alcançará a glória como Adriano Imperador. Porém, todos em sua fé estarão sendo abençoados por Deus.

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João Campos Lima
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Written by João Campos Lima

Jornalista (UFRGS) e escritor, apaixonado por futebol. Brasileiro, natural de São Jerônimo (RS)

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