Bobinas para o alto: um Carnaval a mais para Luan Guilherme
Desde cedo, a cultura de arquibancada dos jogos da América do Sul me impactou. Lembro de, bem novinho, acompanhar a primeira Copa Libertadores que a minha memória tem registro, a de 1998. Nas noites frias de inverno, as arquibancadas de Buenos Aires e Guayaquil (jogos que lembro) pulsavam e efervesciam o coração dos torcedores, e o Vascão fazia bonito rumo ao inédito título. E o então pequeno telespectador já introjetou em sua alma infantil a identificação profunda com o jeito de torcer dos países vizinhos. Toda a festa das arquibancadas deram os subsídios suficientes para que a imaginação do jovem João criasse um mundo a parte, em um jogo com uma pequena bolinha e duas traves, em que as mãos esquerdas e direitas encarnavam os mais variados jogadores e produziam jogos inesquecíveis dentro de casa, sejam num tapete ou numa mesa;
Os anos se passaram e a admiração e os costumes pelo que o futebol transmitia ao povo seguiram. O joguinhos com a bolinha passaram a ser disputados na garagem da casa, e a mãe conta até hoje que eu não permitia a presença de nenhum expectador. A porta era aberta e o jogo cessava imediatamente, sendo retomado apenas quando a paz de estar sozinho se estabelecia novamente. Anos mais tarde, a mãe contou que, da sala de casa, era ouvinte ativa dos duelos disputados, com os gritos de comemoração ecoados a cada gol. Em uma das competições (eram anotadas em um caderno), usei um pedaço de papel higiênico para fazer tiras de papel e estender atrás dos gols, com trapos escritos. Na imaginação fértil do joguinho, esse cenário ocorria nos jogos em Buenos Aires. Quando os times entravam em campo, muitos papeizinhos voavam, simulando as bobinas atiradas nas canchas da América do Sul.
Já no Ensino Médio, e quem era gremista e viveu os anos de 2005 a 2010 sabe o que era sofrer, mas, ao mesmo tempo, torcer como nunca, segui inserindo na minha vida episódios de torcedor apaixonado. Com amigos próximos no colégio, jogávamos futebol com bolinha de papel, em que duas cadeiras simulavam as goleiras. Obviamente, a brincadeira era repreendida pela diretoria, a quem driblávamos jogando às escondidas. Por outro lado, o professor Antônio foi parceiro e, no final da manhã de uma sexta-feira, liberou metade da sala para a disputa da final de um torneio. As disputas estavam tão animadas que passaram a ser disputados também em um campinho. Num dos torneios, naquelas tardes intermináveis da adolescência em que o tempo parecia ser mais demorado e prazeroso, levei na mochila alguns rolos de papel higiênico. Quando o meu time (uma dupla) entrou em campo, os rolos foram atirados pelo campo, simulando as festas ocorridas na Bombonera e outros estádios argentinos. As bobinas improvisadas trouxeram um elemento a mais para a disputa, e os jovens jogavam futebol como se estivessem num estádio da Libertadores.
Todo gremista que se preze sabe o que o maior ídolo do clube proporcionou ao clube como jogador. Atento à história do Tricolor, desde muito novo eu admirava os feitos de Renato Portaluppi, realizados em 1983, seja pelo lançamento espetacular para o peixinho triunfal de César, contra o Peñarol, pelo golaço e irreverência na guerra de La Plata ou, principalmente, pela jornada épica em Tóquio, quando o Grêmio conquistou o mundo pelos dois pés do eterno camisa 7. São orgulhos que o torcedor gremista levará para sempre no coração. Porém, eu conhecia Renato pela história, ele já não estava no Grêmio há muitos anos.
De 1998 em diante, quando comecei a acompanhar futebol, Danrlei e Roger foram dois dos remanescentes do “Grêmio do Felipão” mais longevos. Com o Tetra da Copa do Brasil, em 2001, vibrei mais uma vez com um título nacional (como mencionado em um texto anterior, eu lembro de Grêmio 2x0 Portuguesa, em 1996). Porém, os anos que vieram a seguir desgraçaram as conquistas. Danrlei e Roger não tiveram um final de trajetória digno no clube, o Grêmio caiu em desgraça (por muitos outros motivos) e acabou rebaixado em 2004. Após a epopeica Batalha dos Aflitos, o Grêmio retornou à Série A. E, nos anos seguintes, não faltou apoio e nem exemplos de jogadores que buscaram honrar as três cores do primeiro ao último minuto de cada jogo. Tcheco talvez tenha sido o guerreiro mais simbólico desses duros anos, em que os grandes títulos ficavam perto, mas não chegavam, enquanto o rival empilhava conquistas. Não era fácil.
Na década seguinte, ao mesmo tempo em que Fábio Koff, uma velha entidade, retornava ao clube, a filosofia de futebol do Grêmio passou a ser de dar mais prioridade e protagonismo aos jovens, com grande investimento nas categorias de base. E, dos pés de jovens atletas, vindos de todos os cantos do país, uma nova era de glórias começou a ser construída.
Da Copa São Paulo de 2013, um jovem magrelo foi visto e trazido para a base do Tricolor, por um ano. Com 20 anos de idade, Luan Guilherme de Jesus Vieira não sabia o que faria da sua vida. Em entrevistas mais recentes, admitiu que a Copinha seria a sua última tentativa no futebol, e o então jovem pensava em outros rumos para a sua vida. Quando o Grêmio surgiu na sua vida, brilhou a luz do destino, para o Luan e para o clube. Já no início de 2014, com apenas um ano de base, o meia-atacante já aparecia de modo destacado no time principal. O meu pai, um eterno apaixonado pelo Tricolor, já previu nos primeiros jogos: “esse guri é bom de bola”. Comigo, ocorreu o mesmo encantamento. Esguio e com jeito único de jogar, Luan com poucos meses de profissional já assumia a responsabilidade de ser titular do Grêmio e encarava o Nacional, no Parque Central lotado. Depois, na Arena do Grêmio, faz um golaço de cobertura contra o Atlético Nacional. Começava a ser escrita a história de um dos maiores ídolos das últimas décadas.
Contudo, é importante relembrar que Luan entra no time nos anos finais do longo jejum de 15 anos sem um grande título. Se jogadores cascudos não aguentaram a pressão por um título (Jonas saiu do Grêmio xingando a torcida na Social, por exemplo), o moleque da quebrada paulista suportou o fim dos anos de agonia do Grêmio em silêncio. Se, por um lado, ganhou moral em 2015 e passou a vestir a lendária camisa 7, por outro, passou a conviver com maiores cobranças. E elas vieram. Em protesto contra o time, já em 2016, torcedores jogaram pipoca no carro de Luan. Ao contrário dos cascudos de antigamente, ou dos jovens balaqueiros que vieram nos anos seguintes, Luan jamais reclamou e confrontou com os torcedores. Aguentou calado. E, em silêncio, viu os colorados tripudiarem do Grêmio fazendo “a valsa dos 15 anos”, após a conquista do Gauchão de 2016.
Prometeu a si mesmo, e externou em entrevistas, que gostaria de sair do Tricolor apenas quando tivesse retribuído a grande chance da vida dele com um título importante. E o final daquele 2016 coroou Luan com o penta da Copa do Brasil. Meses antes, ele já havia sido um dos protagonistas do ouro olímpico inédito do Brasil, conquistado no Maracanã. Na Arena do Grêmio, em dezembro, Luan e seus companheiros finalmente exorcizaram o incômodo jejum. Como um verdadeiro torcedor “mordido” pelas provocações de meses anteriores, Luan enfim desabafou: “o Grêmio é campeão e… (vocês sabem)”. E esse espírito de torcedor que potencializa a vontade de vencer um clássico esteve presente no jovem atleta durante toda a sua trajetória: de 2014 a 2019, Luan foi o dono de vários Grenais, seja na Arena ou no Beira-Rio.
Em 2017, o que já era uma bela história ganhou o seu capítulo mais glorioso. O Grêmio conquista o tricampeonato da Libertadores, e Luan é eleito o Rei da América. Para um torcedor da minha idade, ou para gremistas mais jovens, eis um herói esperado há tantos anos. Tudo o que Luan proporcionou ao torcedor é o que se espera nas mais gloriosas histórias. Um jovem, que veio da base e que sempre demonstrou ligação afetiva com o clube e com os torcedores, chegou aos mais gloriosos degraus do futebol sul-americano.
Mesmo assim, a vida de Luan não parece destinada a um paraíso tranquilo e celestial. Em 2018, Luan sofre com muitas lesões, e não é chamado para a Copa do Mundo. No segundo semestre daquele ano, num domingo às 11h, mesmo sendo um jogador consagrado, Luan é extremamente vaiado pela torcida, num Grêmio x Ceará. No final do jogo, para o regozijo de boa parte da torcida que não o estava vaiando (eu obviamente faço parte dessa camada), Luan dá a vitória ao Grêmio com um golaço de falta, e é fortemente aplaudido e reverenciado. Assim como veio dos pés dele o cruzamento para o gol salvador de Alisson contra o Estudiantes, num dos jogos mais emocionantes da breve história da Arena. Porém, Luan começava a viver um período de instabilidade. A vida desregrada extracampo e as lesões vão minando a confiança e a autoestima daquele brilhante camisa 7, que encerra a sua passagem no Grêmio de forma trôpega (mesmo assim, acaba a temporada como o segundo jogador com maior participação em gols, apenas atrás de Everton Cebolinha).
Sua ida ao Corinthians é um desastre. Preste atenção, leitor: estamos nos capítulos mais tristes e sombrios da trajetória profissional do atleta. Sem jogar há quase um ano, Luan é covardemente agredido por torcedores bandidos do Corinthians num motel. Renato, num gesto de grandeza que simboliza bem o porquê ele é tão amado no mundo do futebol, escancara as portas do Grêmio a Luan. Mais do que uma nova chance profissional, é uma ajuda humanitária, a um dos maiores jogadores da história do Grêmio, que muito orgulhou o treinador com a mesma camisa 7 que ele brilhara nos Anos 1980. Ou devemos virar as costas para ele?
Há muitos torcedores que não querem Luan. E eu os entendo. Neste texto extremamente corrompido de paixão e idolatria, trouxe muitos elementos que explicam como me fizeram florescer uma forte idolatria pelo jogador, que flutuava em campo e encantava com o seu belo futebol. Porém, entendo que, racionalmente, trata-se de um negócio extremamente arriscado, e a chance de retorno não é das mais altas.
Porém, eu jamais deixarei de olhar o futebol pelo seu lado apaixonante, lúdico e da relação com as massas. Desde as primeiras horas em que as notícias de um possível retorno foram colocadas no ar, a torcida entrou em transe. E, entenda torcedor racional que, se por milagre, chegou até o fim deste texto piegas com cara de inconformado: obviamente, todos nós queremos a praticidade “empresarial” para os nossos jogadores, vendo eles em forma, dedicados, destacando-se e fazendo a diferença em campo. Eu também desejo isso, acredite. Porém, eu entendo que o futebol também pode ser mais mágico do que apenas os resultados. E quando as ruas se agitam e jovens e idosos abrem um sorriso pelo retorno do seu eterno rei, não sou eu que me colocarei contra.
O que vai acontecer, não sabemos. O que eu sei é que a volta de Luan vai alimentar expectativas e sonhos. Luan, volta! Porto Alegre te espera para mais um Carnaval. Bobinas para o alto e muita festa, porque Luan Guilherme, o eterno reizinho, está voltando para os braços da nação tricolor.